O que é Cultura Livre para Lawrence Lessig?

March 19, 2018


Lawrence Lessig pode não ser muito conhecido, mas seus feitos são. Escritor norte-americano e professor de Direito em Harvard, ele é fundador da Creative Common, que atua para amenizar as barreiras no compartilhamento de bens culturais, como músicas e filmes. Lawrence ainda é apoiador da Internet livre e, assim, liberou online seu famoso livro Cultura Livre: Como a Grande Mídia Usa a Tecnologia e a Lei Para Bloquear a Cultura e Controlar a Criatividade

Mas o que é Cultura Livre?


CAPÍTULO 1: CRIADORES
A importância de 1928
Em 1928, um personagem de desenho animado nascia. Mickey Mouse apareceu pela primeira vez em Maio daquele ano, em um desenho mudo chamado Plane Crazy. Em novembro, no Colony Theater em Nova Iorque, no primeiro desenho animado com som sincronizado amplamente distribuído, Steamboat Willie trouxe à vida o personagem que iríamos conhecer como Mickey Mouse. O som sincronizado foi introduzido em um filme um ano antes com o filme The Jazz Singer. Esse sucesso levou Walt Disney a copiar a técnica e colocar som em seus desenhos animados. Ninguém sabia se isso iria funcionar e, se funcionasse, se iria ser aprovado pelo público. Mas quando Disney fez um teste no verão de 1928, os resultados foram indiscutíveis. (p. 21)
1928 também marcou outra transição importante. Nesse ano, um gênio da comédia (em oposição ao desenho animado) criava seu último filme mudo produzido de forma independente. Esse gênio era Buster Keaton. O filme era Steamboat Bill, Jr [...]  Na era dos filmes mudos, ele tornou-se um mestre em como usar trejeitos cômicos como uma maneira de fazer seu público explodir em gargalhadas. (p.210
Steamboat Bill, Jr apareceu antes do desenho animado de Disney Steamboat Willie, A semelhança nos títulos é intencional. Steamboat Willie é uma paródia direta em desenho animado de Steamboat Bill, Jr,[20] e ambos foram criados tendo como base uma mesma música. Não foi apenas por causa da invenção do som sincronizado em The Jazz Singer que conseguimos Steamboat Willie. Também foi graças ao filme de Buster Keaton Steamboat Bill, Jr, ele próprio inspirado na canção “Steamboat Bill”, que ganhamos Steamboat Willie, e a partir de Steamboat Willie, Mickey Mouse. Esse “empréstimo” não era novidade, seja para Disney ou para a indústria. (p. 22)
Disney sempre foi uma copiadora dos recursos mais importantes dos principais filmes de seu tempo. E assim ele fez muitos outros. Os primeiros desenhos animados eram cheios de plágios, de variações de temas interessantes e de novas versões de histórias antigas. A chave para o sucesso estava na magnitude das diferenças [...] Disney adicionou novidades ao trabalho de outros antes dele, criando algo completamente novo, de algo levemente antigo. (p. 22 e 23)
Algumas vezes essas cópias eram sutis. Outras eram significativas. Pense nos contos de fadas dos Irmãos Grimm. Se você é tão culturalmente cego quanto eu era, você poderia pensar que esse contos eram história alegres e doces, apropriadas para contar para as crianças na hora de dormir. Na verdade, os contos de fada dos Irmãos Grimm eram, bem, para nós, cruéis. Apenas pais temerários tinham coragem de ler tais histórias, moralistas e cruéis, para seus filhos, na hora de dormir ou em qualquer outro momento. Disney pegava tais histórias e as recontava de uma maneira que as pessoas pudessem aceitá-las. Ele animava as histórias, tanto com personagens quanto com luz. Sem remover os elementos de perigo e de medo contidos nas histórias, ele tornou divertido o que era escuro e injetou uma bela dose de compaixão aonde antes havia pavor. (p.23)
Essa é uma expressão da criatividade. Essa é uma criatividade da que devemos nos lembrar e celebrar. Existem aqueles que dizem que não existe criatividade que não seja desse tipo. Não precisamos ser tão radicais para reconhecer a sua importância. Nos podemos a chamar de “criatividade Disneyana”, mas isso poderia ser um pouco errôneo. Essa é, mais precisamente, uma “criatividade Waltdisneyana” — uma forma de expressão e genialidade que é construída sobre a cultura que existe ao nosso redor e a torna algo diferente. (p. 24)
Lawrence Lessig[...] meu propósito aqui não é o de entender o manga, e sim o de descrever uma certa variante de manga que, na perspectiva de um advogado, é bastante estranha, mas na perspectiva da Disney é bastante similar. É o fenômeno do doujinshi. Doujinshi também são quadrinhos, mas eles são como cópias de outros quadrinhos. Uma ética bastante clara governa o doujinshi. Doujinshi não é simplesmente uma cópia; o artista precisa fazer uma contribuição para a arte que ele copia, transformando-a de forma sutil ou significativa. Um gibi doujinshi pode então pegar um gibi de sucesso e desenvolver sua história de maneira diferente — com uma linha de história diferente. Ou então o gibi pode pegar personagem por personagem do mesmo jeito, mas mudando sua aparência levemente. Não existe fórmula para determinar o quão “diferente” é o doujinshi. Na realidade, existem comitês que avaliam os doujinshi para inclusão em eventos e rejeitam qualquer um que não passe de plágio puro [...] Esse mercado existe em paralelo ao mercado comercial oficial de manga. De certa forma, eles competem claramente com o mercado, mas não existe nenhum esforço concentrado daqueles que controlam o mercado comercial do manga em acabar com o mercado do doujinshi. (p.25)
Vivemos em um mundo que celebra a “propriedade”. Eu sou um desses celebradores. Eu acredito em um mundo de propriedades em geral, e eu também acredito no valor dessa forma estranha de propriedade que os advogados chamam de “propriedade intelectual”. Uma sociedade grande e diversificada não pode sobreviver sem propriedades. Uma sociedade grande, diversificada e moderna não pode florescer sem propriedade intelectual.  (p. 27)
Mas basta refletir um pouco mais para entender que existe muito valor aonde a “propriedade” não pode ser definida. Eu não quero dizer que “dinheiro não traz felicidade”, mas o valor é claramente parte de um processo de produção, seja ele comercial ou não [...] Desse modo, mesmo sabendo que as ideais que Disney pegou — ou generalizando, as ideais pegas por qualquer um exercitando a criatividade Waltdisneyana — têm valor, nossa tradição não considera tais tomadas como erradas. Algumas coisas permanecem livres para serem pegas por qualquer um em uma cultura livre, e essa liberdade é boa. (p. 27)

Se um artista doujinshi invade o escritório de uma editora e foge com mil cópias do mais recente trabalho de tal editora — ou mesmo com uma cópia — sem pagar, nós iremos sem hesitar dizer que isso é errado. Além de ter cometido uma transgressão, ele roubou algo de valor. A lei proíbe o roubo em todas as suas formas, sejam grandes ou pequenas. No entanto há uma óbvia relutância, mesmo entre os advogados japoneses, em dizer que os artistas de doujinshi estão “roubando”. Essa forma de criatividade Waltdisneyana é vista como justa e legal, mesmo sem os advogados em particular saberem dizer o porquê. (p. 27)
Os criadores aqui e em todo lugar estão sempre e o tempo todo construindo em cima da criatividade daqueles que vieram antes e que os cerca atualmente. Essa construção é sempre e em todo lugar parcialmente feita sem compensação ou autorização do criador original. Nenhuma sociedade, livre ou controlada, jamais obrigou qualquer forma de pagamento ou exigiu permissão para todos os usos de criatividade Waltdisneyana que aconteceu. (p.28)
De fato, todas as sociedades tem uma certa parcela de sua cultura livre para ser usada — sociedades livres mais que outras menos livres, talvez, mas todas as sociedades possuem essa liberdade em lgum grau. (p.28)
Culturas livres são culturas que deixam uma grande parcela de si aberta para outros poderem trabalhar em cima; conteúdo controlado, ou que exige permissão, representa muito menos da cultura. A nossa cultura era uma cultura livre, mas está ficando cada vez menos livre. (p.28)

 CAPÍTULO 2: MEROS COPIADORES

Ferramentas democráticas dão à pessoa comum um meio de se expressarem de maneira mais simples do que com as ferramentas que existiam antes. (p.31)
O que foi necessário para que essa tecnologia florescesse? [...] No começo da história da fotografia, houve uma série de decisões judiciais que poderiam muito bem ter alterado a história da fotografia totalmente. As Cortes foram questionadas se o fotógrafo, amador ou profissional, deveria pedir permissão antes de tirar e revelar qualquer imagem que ele desejasse. A sua resposta foi não. (p.31)
Enquanto não há dúvidas de que seu pai tem o direito de mexer no motor do seu carro, existem dúvidas de se seu filho tem o direto de mexer com as imagens que ele encontra espalhadas por aí. A lei e, cada vez mais, a tecnologia interfere na liberdade que a tecnologia, e a curiosidade, deveriam assegurar [...] Nós criamos uma tecnologia que pega a mágica da Kodak, a combina com imagens em movimento e sons, e adicionamos a ela um espaço para comentários e para divulgar essa criatividade em todo lugar. Mas estamos construindo a lei de modo a barrar tal tecnologia. (p.42)

CAPÍTULO 4: PIRATAS

Se podemos entender “pirataria” como o uso de propriedade intelectual dos outros sem permissão — ainda mais se o princípio “se tem valor, tem direito” estiver correto — então a história da indústria cultural é uma história de pirataria. (p.49)
A indústria cinematográfica de Hollywood foi construída por piratas fugitivos.[51] Os criadores e diretores migraram da Costa Leste para a Califórnia no começo do século 20 em parte para escaparem do controle que as patentes ofereciam ao inventor do cinema, Thomas Edison. Esses controles eram exercidos através de um “truste” monopolizador, a Companhia de Patentes da Indústria Cinematográfica, e eram baseadas na propriedade intelectual de Thomas Edison — patentes. (p.49)
Os Napsters daquele período, os “independentes”, eram companhias como a Fox. E de forma semelhante ao que acontece atualmente, esses independentes foram duramente enfrentados. “As filmagens eram paralisadas pelo roubo de equipamentos, e ‘acidentes’ resultavam na perda de negativos, equipamento, prédios e algumas vezes até mesmo de vidas”.[53] Isso levou os independentes a fugir da Costa Leste. A Califórnia era remota o suficiente do alcance de Edison para que esses cineastas pirateassem suas invenções sem medo da lei. E os líderes do cinema de Hollywood, Fox entre eles, fizeram exatamente isso. (p.50)
Claro que a Califórnia cresceu rapidamente, e logo a proteção às leis federais acabou chegando ao oeste. Mas como as patentes davam ao dono das patentes um monopólio realmente limitado (apenas dezessete anos naquela época), quando suficientes agentes federais apareceram, as patentes haviam expirados. Uma nova indústria nasceu, em parte por causa da pirataria da propriedade intelectual de Edison. (p.50)
A indústria fonográfica nasceu de um outro tipo de pirataria, embora essa nos force a entender um pouco sobre os detalhes de como a lei regulamenta a música. (p.51)
Quando Paulo Coelho escreve um livro, um distribuidor pode publicar esse livro apenas se ele der permissão. Paulo Coelho, por sua vez, é livre para cobrar o que ele quiser pela permissão. O preço para publicar-se um livro de Paulo Coelho é definido, portanto, por Paulo Coelho, e a lei de direitos autorais basicamente afirma que você não tem permissão para usar um trabalho de Paulo Coelho a não ser com sua permissão. Mas a lei que rege a música dá aos músicos menos direitos. E, na prática, a lei subsidia a indústria musical através de um tipo de pirataria — dando aos músicos direitos menores do que daria para outros artistas. A Legião Urbana possui menos controle sobre seu trabalho criativo do que Paulo Coelho. E os beneficiários de tal redução no controle são a indústria fonográfica e o público. A indústria fonográfica obtêm algo de valor por menos do que normalmente teria que pagar e o público passa a ter acesso a uma gama muito mais ampla de criatividade musical. (p.51)
O Rádio também nasceu da pirataria. Quando uma estação de rádio toca uma música no ar, isso constitui uma “apresentação pública” do trabalho do compositor. Como eu descrevi anteriormente, a lei dá ao compositor (ou ao detentor do copyright) um direito exclusivo sobre as apresentações públicas de seu trabalho. Desse modo, a estação de rádio devem dinheiro ao compositor por tal apresentação. (p.53)
Mas quando uma estação de rádio toca uma música, ela não está apenas executando uma cópia do trabalho do compositor, mas também do trabalho do artista que gravou a música. Uma coisa é você levar uma gravação de “Feliz Aniversário” cantada pelo coral de crianças da cidade; outra completamente diferente é levar uma executada pelo Skank ou por Rita Lee. O artista está adicionando seu valor à música executada pela estação de rádio [...]  Pela lei que rege a radiodifusão, as estações de rádio não precisam pagar ao artista, só ao compositor. Dessa forma, elas conseguem uma parte da música de graça. (p.53 e 54)
Sem sombra de dúvidas alguém irá afirmar que, em compensação, o artista se beneficia da promoção que ele recebe, que normalmente vale mais do que qualquer retorno que os direitos de performance poderiam lhe dar. Talvez isso seja verdade, mas mesmo assim, a lei em princípio dá ao criador o direito de fazer sua escolha. Fazendo uma escolha por eles, a lei dá às estações de rádio o direito pegarem algo de graça. (p.54)
 A TV a cabo também nasceu de uma forma de pirataria. Quando os empreendedores do cabo começaram a fornecer às comunidades com TV a cabo em 1948, muitos deles negaram-se a pagar às redes de TV pelo conteúdo que eles redistribuíam aos seus consumidores. Mesmo quando as companhias de cabo começaram a vender acesso às redes de TV, eles negavam-se a pagar pelo que elas vendiam. (p.54) 
Todas essas histórias possuem temas comuns. Se “pirataria” significa usar o valor da propriedade intelectual de alguém sem sua permissão — como tal conceito é descrito cada vez mais atualmente[69] — então todas as indústrias afetadas pelo copyright atualmente são produtos e se beneficiaram de alguma forma de pirataria. Filme, música, rádio, TV a cabo... A lista é grande epoderia ainda assim ser expandida. Todas as gerações davam boas-vindas aos piratas do passado — até agora. (p.56)
Existe sim a pirataria de material sob copyright. Uma grande quantidade dela e de várias formas, sendo a mais significativa a pirataria comercial, o uso não-autorizado de conteúdo de outras pessoas em um contexto comercial. Junto com esse tipo de pirataria existe uma outra forma de “uso” que está mais diretamente relacionado com a Internet. Esse uso também parece errado para muitos, e realmente está errado na maior parte do tempo. Porém, antes de acusarmos isso como “pirataria”, devemos entender sua natureza melhor. Porque o prejuízo provocado por esse uso é significativamente mais ambíguo que a cópia descarada, e a lei deveria levar essa ambigüidade em conta, com freqüentemente fez no passado. (p.57)

Lessig: é possível ter uma internet livre 

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